sábado, 23 de janeiro de 2016

Um texto amargo e talvez injusto sobre a cidade planejada para ser o paraíso


Hoje eu entendi que o dia era para escrever. Todos os planos cancelados, a internet cortada na biblioteca e em casa, presa comigo mesma entre carros e um tanque de gasolina que diminui rapidamente. Não foi essa semana que coloquei quase cinquenta reais? O dinheiro vai escoando pelos dedos e a gente nem se dá conta.




O céu visto pela minha janela parece estar mais distante do que antigamente apesar das nuvens densas que ao decorrer do dia fazem um chuvisco. Tão engraçado como as nuvens parecem estar mais altas, e mesmo nublado a cidade ainda brilha com os resquícios de luz solar. Moro na cidade que têm tudo para ser o paraíso. Belezas naturais em cada esquina, um centro histórico com prédios construídos há mais de quinhentos anos, uma população que sabe e gosta de festejar, pessoas que se dedicam no dia a dia para receber o seu salário e viver uma vida digna.
Me lembro ainda de quando minha vó tinha saúde e me contava que passava um rio pela nossa rua, lembro das aulas de história em que o professor dizia sobre o rio que cruzava o centro histórico, de quando minha mãe falava que o ônibus não passava naquele bairro onde o rio aos poucos desapareceu. Eu ainda cheguei a ver muitos dos poucos rios que haviam sobrevivido até os anos 90, mas todos eles já tinham virado coletores de esgoto a céu aberto. Que criança saberá que ali onde hoje fica o parquinho antigamente era o rio esgoto? Todos os rios foram mortos à medida que a cidade crescia e depois lacrados em tubos de cimento para dar passagem aos carros. Minha cidade que têm tudo para ser o paraíso na Terra perdendo seus brincos de ouro, sua Veneza tropical.
Entre um prédio e outro um pouco de mato e um coqueiro que nem é nossa árvore típica. Mas como que duas bandeiras triunfantes dois coqueiros estendem suas palhas solitárias em um plano de fundo distante. Até lá só a selva de pedra. Engraçado como eu consigo imaginar a cachoeira que descia pela ladeira e o vale onde hoje se encontra a rua comercial. Entre o vai e vêm de pessoas eu me pergunto se será que é isso mesmo que eu vim fazer aqui: destruir mais, comprar o que não preciso, gastar o que não tenho.
São tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, mas a população é o que toda boa cidade tem de melhor. Na minha cidade que poderia ser o paraíso, a população é extremamente religiosa e supersticiosa, varia entre gente que se veste de branco toda sexta ao pregador com a sua bíblia no ponto de ônibus. A religião é diversificada, mas mesmo proclamando que Deus é amoroso e perdoou a todos, seus fiéis mais próximos ainda não conseguiram entender a diferença entre opinião pessoal, respeito e compreensão do que hoje chamamos intolerância religiosa. Esse dilema entre valores ainda complica a convivência na comunidade, mas mesmo assim vamos vivendo entre pedradas e cultos dominicais. Como dizem “aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”, fico a pensar quantos santos e não pecadores existem por aí para termos tantas pedras sendo atiradas uns aos outros. Falando nisso fui na festa da lavagem outro dia porque aqui tem lavagem para tudo, rua, escada, beco, encruzilhada. É só dizer o dia e o local que a lavagem será armada. A lavagem para quem não sabe é uma festa popular com muita música, bebida e dança, podendo ter uma conotação religiosa ou profana. Aos mais íntimos da cultura a lavagem também pode vir acompanhada da enxaguada, que nesse caso também é uma festa, mas que pela ordem dos fatores se o leitor for bom de lavar roupa, ocorre depois da festa da lavagem.
Apesar de tudo as pessoas no fundo têm um coração bom. Alguém pode até te dar um copo de água e um lanche se você aparentar faminto, mas tenha a cautela de verificar se já não está estragado, pois muitas vezes doamos aquilo que não nos serve mais de tão duro que o pão está ou de tão antigo que o feijão ficou na geladeira. A boa vontade existe e é latente, mas resistimos muito a oferecer ao outro aquilo que ainda nos serve. Talvez sejam marcas de uma pobreza antiga ou o pensamento de que amanhã aquele pote de feijão ainda poderá salvar o almoço.  Entretanto, se te oferecerem um copo de cerveja tenha certeza que ele virá gelado, pois na bebida todos se encontram com a garrafa recém-aberta.    
Aqui todo mundo é tio ou tia se o interlocutor for uma criança pequena ou adolescente. A proximidade cruza inúmeras barreiras e em poucos minutos você pode virar o amigo de infância ou a princesa de alguém. Conversas de negócio podem vir acompanhadas de piadas e apelidos numa via informal. Mas apesar de parecermos relaxados aqui o trabalhador sai cedo de casa e sempre se depara com o engarrafamento constante e o ônibus cheio. Ouvi outro dia de um rapaz na rua que a cidade estava estranha pois ele não havia pego um engarrafamento. Se eu pudesse faria a cidade ficar estranha todo dia, mais ainda se fosse capaz de reduzir a música alta e o número de outdoors.
Uma cidade linda mesmo sendo feia. Ainda lembro quando falei essa frase sem sentido. Estava dirigindo dois anos atrás pela cidade baixa com um amigo no carona. Ele de outro estado replicou que aqui não era lá um lugar bonito. Não podia deixar aquilo passar, tinha tanto orgulho da minha cidade que os meus olhos viam beleza até nas casas caídas e no povo sofrido. Como não admirar aquele que tem força e segue em frente mesmo no caos? Como não achar bonita as marcas de sol no rosto de quem aguenta passar o dia inteiro exposto pelas ruas. Muita crueldade não ver a bravura e a beleza que moram nesses atos.  
A minha cidade em seu projeto que não existiu tinha tudo para ser o paraíso, hoje ela tem tudo, shopping da moda, carro importado, roupa bonita, só não tem a minha bucólica paz.



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Música


Atualmente eu prefiro deixar o rádio desligado. A mesma música que eu ouvia quando criança é a que toca no especial do meio dia e quando não é sobre amor é sobre sexo ou sobre sexo sem amor. 

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